Trabalho Têxtil
Memorial descritivo: “Sob Azul”
Ao longo da matéria anual “Projetos Avançados: Espaço, tempo e forma”, pude
conhecer mais sobre a área têxtil nas artes visuais. Pessoalmente, era uma forma de
produção que escapava do meu olhar pela ignorância; eu não tinha ideia do quão este
meio técnico e artístico era presente na arte, na ciência, e no dia a dia. O trabalho no
têxtil acumula em si uma coleção de saberes que ultrapassa tempo e espaço,
abrangendo diferentes épocas e culturas. Buscando a importância dos têxteis na
minha própria vivência, me deparei com eventos que apenas complementaram minha
pesquisa e meu interesse na área. Desde os crochês e bordados da minha vó, as
roupas que minha mãe e minha tia faziam, até minha mãe me ensinar um remendo
básico, que eu uso até hoje.
Porém, uma das peças têxteis que eu tenho mais convivência hoje, é um edredom azul
que eu ganhei assim que me mudei para Curitiba. Ele tem quase 9 anos de uso, e já
está ficando desbotado, manchado, furado e rasgado de tanto uso e lavagens na
máquina. O edredom foi o item que esteve presente nos pontos altos e baixos da
minha adolescência. Foi onde eu dormia, descansava e chorava. Foi sob ele que eu me
acalmava em crises de ansiedade, e foi sobre ele que eu tive minha primeira relação
sexual. Era o que eu usava em cima de tudo no frio, e o que eu abraçava no calor. Este
edredom representa, para mim, o simples conforto do espaço caseiro em meio às
mudanças caóticas que a adolescência traz. E essas vivências ficam gravadas no
tecido puído e bordados arrebentando. Eu já tinha a intenção de remendar o edredom à
algum tempo, mas ao estudar mais sobre a arte têxtil, pensei em torná-lo também uma
peça de arte utilitária e interativa.
Como eu queria usar do edredom como peça principal, busquei referências dois
artistas: Rafael Codognoto, com a obra “Flora” (2022), e Robert Rauschenberg, com a
obra “Cama” (1955). Em “Flora”, existe a exploração do objeto pessoal, que aqui foi
descartado, em material para a obra de arte. As fotos, os tecidos e outros itens
compõe formas que se conectam por meio de bordados e outras intervenções, que
constroem a personagem “Flora” na mente do espectador. E no caso de “Cama”, o
artista utiliza o seu próprio lençol como tela de pintura, realizando intervenções
enquanto buscava separar o utilitário da peça artística. Porém, ao concluir,
Rauschenberg concluiu que sua visão da peça permaneceria como o lençol; então ele
complementou a peça adicionando uma fronha.
Esses dois trabalhos possuem a intervenção em objetos pessoais para sua
ressignificação; ou construção da narrativa que tem como base o senso de indivíduo
que estes utilitários trazem.
Neste processo de restauro e instauração do fazer artístico sob a peça já feita, estou
formando uma “pesquisa baseada em arte”: onde o produzir artístico alia-se às
referências teóricas externas para a produção de conhecimento.
Para produzir os remendos, me inspiro na técnica que eu aprendi no primeiro semestre
da matéria: o Sashiko — uma técnica de bordado japonês milenar, que remenda peças
de diferentes tecidos, e evidencia a parte remendada com os desenhos geométricos do
fio. Mesmo que o Sashiko tenha evoluído ao longo dos anos e utilizado por diversos
artistas, ele ainda como princípio a reutilização, o concerto e o remendo do que foi
rasgado. A ideia de reviver uma peça que sofre uma metamorfose pela intervenção do
bordado me atrai como conceito artístico.
Em algum momento, todo o tecido irá puir e se desmanchar. Isso faz parte da obra, e é
esse desgaste que me inspirou a produzir essa peça em primeiro lugar. Então, ela
continuamente sofrerá alterações e renovações. O trabalho, que também conecta com
outros projetos artísticos, se baseia em um bordado muito mais instintivo; ao produzir
os padrões e perceber suas irregularidades, eu sinto prazer no ato do bordar. Desejo,
com este trabalho, realçar as nossas relações com objetos pessoais, e como
marcamos nossa existência no mundo por meio da nossa relação com ele. O
desmanche, a idade, o tempo: tudo isso é natural, e o processo de remendar
demonstra um carinho e autenticidade que só existe pela peça apresentar desgaste.
Talvez esteja aí: A beleza da vida está no fato que ela desgasta. Mesmo assim, nunca é
tarde para remendar.
REFERÊNCIAS:
CODOGNOTO, Rafael. Galeria BOA VISTA - Rafael Codognoto. Disponível em: Isabel
Meirelles. Acesso em: 1 ago. 2025.
CODOGNOTO, Rafael. O LIXO DA CIDADE DEZ ANOS DE ASSEMBLAGE DE RAFAEL
CODOGNOTO. Catálogo, p. 15, 2022.
LAMPKIN, Fulwood. Cama - Robert Rauschenberg. 4 ago. 2018. Disponível em:
https://historia-arte.com/obras/cama. Acesso em: 11 nov. 2025.
MALLMANN, Marisa. Bordados japoneses: Sashiko e Boro – Nipocultura. 9 abr. 2019.
Disponível em: https://nipocultura.com.br/bordados-japoneses-sashiko-e-boro.
Acesso em: 11 nov. 2025.
REY, Sandra. Por uma abordagem Metodológica da Pesquisa em Artes Visuais. In:
BRITES, Blanca, TESSLER, Elida. O Meio como Ponto Zero: metodologia da pesquisa
em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. 159 p. p. 123-140.
(versão impressa em livro). Disponível em:
https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/529/2022/03/BRITES-Blanca_-TESSLER-Elida
org-O-meio-como-ponto-zero-Por-uma-abordagem-metodologica-da-pesquisa-em
artes-visuais.pdf